A Baleia, Brendan Fraser e o rompimento da cultura do silêncio
- Lucas Rezende
- 12 de mai.
- 5 min de leitura

Em 2022, A Baleia (The Whale), filme dirigido por Darren Aronofsky e roteirizado por Samuel D. Hunter, emocionou plateias ao narrar os últimos dias de vida de Charlie, um professor recluso que carrega no corpo e na alma o peso de perdas irreparáveis. A trama é densa, comovente e incômoda, não pelo que mostra, mas por tudo aquilo que nos obriga a sentir. Para além da narrativa ficcional, foi a atuação de Brendan Fraser que me comoveu profundamente. Mais do que uma performance técnica, ali estava um homem entregando sua própria dor para dar vida a outra.
Charlie vive sozinho, isolado em um apartamento escuro e abafado. Ex-professor de literatura, ensina aulas on-line com a câmera desligada. Após a morte de Alan, seu companheiro, vítima de suicídio, Charlie mergulha em um processo de autodestruição, marcado por compulsão alimentar, abandono dos cuidados médicos e isolamento emocional. Alan havia sido seu aluno e também irmão de Liz, sua amiga e cuidadora. A relação de Alan com a própria família era marcada por rejeição, sobretudo por parte do pai. Pouco tempo após o início do relacionamento com Charlie, Alan foi encontrado morto em um rio. Esse episódio trágico funciona como ruptura na narrativa e no corpo de Charlie.
A obesidade mórbida do personagem não é tratada como caricatura, mas como evidência física de uma dor psíquica intensa e prolongada. Seu corpo é um território onde a ausência e a culpa se materializam. A casa em que vive, quase um bunker, reforça o sentido de clausura e de espera passiva pela morte. O alimento torna-se a única forma de prazer e anestesia. Não há lugar para vaidade ou esperança, mas há, paradoxalmente, espaço para um último gesto de amor: a tentativa de reconexão com a filha, Ellie, adolescente rebelde, marcada pelo abandono.
Charlie, em seus últimos dias, busca deixar algo de verdadeiro para ela. Algo que não seja dinheiro ou explicações, mas uma presença, mesmo que tardia. A relação entre os dois é desconcertante, crua, repleta de silêncios e de confrontos. Mas também revela um desejo genuíno de reparar o que, talvez, seja irreparável. A Baleia é, antes de tudo, um filme sobre a dignidade que resiste mesmo no esgotamento da vida.
Mas o que torna essa obra ainda mais potente é saber que, por trás daquele corpo exausto, está Brendan Fraser, ele mesmo sobrevivente de uma dor profunda. Nos anos 1990, Fraser foi um dos rostos mais populares do cinema. Carismático, bem-sucedido e presente em grandes produções, sua ascensão foi interrompida abruptamente. Em 2018, em entrevista à revista GQ, revelou que havia sido vítima de agressão sexual cometida por Philip Berk, então presidente da Associação de Imprensa Estrangeira de Hollywood. Segundo o ator, durante um evento oficial, Berk o apalpou nas nádegas de forma invasiva e não consentida, deixando-o em estado de choque e profunda angústia. Embora não tenha registrado denúncia formal, sua revelação pública escancarou o quanto a indústria ainda naturaliza a impunidade e pune quem rompe o silêncio.
A resposta institucional foi reveladora. Nenhuma medida concreta foi tomada à época. Fraser passou a ser gradualmente excluído dos grandes papéis. Enfrentou depressão, múltiplas cirurgias ortopédicas, um divórcio e um apagamento simbólico de sua carreira. Em 2021, Philip Berk seria finalmente expulso da HFPA após enviar um e-mail ofensivo aos membros da entidade, chamando o movimento Black Lives Matter de “movimento de ódio racista” e atacando uma de suas fundadoras.
Sua consagração com o Oscar de Melhor Ator por A Baleia foi, portanto, mais do que reconhecimento artístico. Foi justiça simbólica. Foi escuta. Foi reparação. A dor de Fraser, assim como a de Charlie, ganhou contorno, nome, carne. E isso me fez refletir sobre as muitas formas de violência que seguem sendo deslegitimadas, negadas, desacreditadas.
No Brasil, a agressão sexual encontra amparo no ordenamento jurídico, mas a cultura do silêncio ainda impera. O Código Penal tipifica crimes como o assédio sexual (art. 216-A), o estupro (art. 213), o estupro de vulnerável (art. 217-A), a importunação sexual (art. 215-A), a violação sexual mediante fraude (art. 215) e o registro não autorizado da intimidade sexual (art. 216-B). São previsões legais importantes, mas ainda distantes da realidade concreta de muitas vítimas.
Quando a violência ocorre no contexto doméstico ou familiar, especialmente contra a mulher, aplica-se a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006), que ampliou o conceito de violência para além da física, incorporando também as dimensões psicológica, moral, patrimonial e sexual. Ainda assim, o número de feminicídios cresce. Em 2021, o Brasil registrou 1.341 casos de feminicídio, sendo que 68,7% das vítimas tinham entre 18 a 44 anos, 65,6% morreram dentro de casa e 62% eram negras. Os autores dos feminicídios em 81,7% dos casos foram o companheiro ou ex-companheiro.
Entre os padrões identificados, um dado chama atenção: um número expressivo de agressores se suicida após matar a mulher. Esses casos costumam ser precedidos por ameaças, histórico de violência, ciúmes obsessivo, controle financeiro e isolamento. O assassinato, seguido de suicídio, é frequentemente o ápice de uma masculinidade doentia que não aceita perder o controle. Trata-se de uma lógica de posse, em que a mulher é eliminada por ousar existir fora da dominação imposta.
Essas mortes não ocorrem por acaso. Elas são produto de uma cultura que ainda educa homens para dominar, silenciar, punir. E de um sistema que, muitas vezes, naturaliza a violência e revitimiza quem ousa falar. O enfrentamento a essa realidade exige mais do que aplicação da lei. Requer políticas públicas, educação para a equidade, redes de proteção e um Judiciário atento à complexidade dessas violências.
A esse respeito, é importante destacar o estudo de Talita Silva Costa, mestra pela Universidade Federal do Pará, que analisou decisões judiciais em casos de agressão sexual e encontrou um padrão perturbador: mesmo quando os laudos periciais apontavam a presença de sangue na cavidade vaginal das vítimas, a Justiça concluiu que não era possível afirmar a autoria nem a materialidade do crime sexual. Essa conclusão, por vezes reiterada, revela não apenas negligência, mas também uma lógica institucional que insiste em duvidar da palavra e do corpo da mulher, mesmo diante de evidências materiais.
O Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, aprovado pelo Conselho Nacional de Justiça em 2021, é uma ferramenta fundamental nesse sentido. Ele orienta magistradas e magistrados a superar estereótipos, interpretar as provas com sensibilidade e compreender o impacto estrutural das desigualdades nas relações humanas. É um passo importante para que a justiça não apenas julgue, mas escute.
A história de Charlie, o personagem. A história de Brendan Fraser, o ator. Ambas nos lembram que a dor, quando silenciada, apodrece por dentro. Mas, quando reconhecida, ainda pode ser transformada. Seja em arte, seja em justiça.
Porque há dores que gritam sem voz. E há corpos que denunciam o que palavras não alcançam. Que possamos ser, cada vez mais, capazes de escutar.
É dever de toda a sociedade lutar pelo fim da violência contra a mulher. Porque a omissão é cumplicidade, o silêncio é manutenção da estrutura e a naturalização da dor feminina é parte do problema. Cada gesto de denúncia, acolhimento, escuta e responsabilização contribui para romper com um ciclo histórico de opressão. Enfrentar a violência de gênero é compromisso com a dignidade, com a justiça e com um futuro onde o respeito à vida das mulheres seja inegociável.
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